No último domingo, as praias no Brasil se encheram em mais uma “abertura do verão” (apesar de ainda estarmos longe do início oficial da estação). A data de 7 de setembro continua sendo lembrada como Independência, marcada pelo imaginário de um quadro famoso: “Independência ou Morte”, pintado por Pedro Américo, que ilustrou em cores vibrantes a cena heroica do príncipe regente às margens do Ipiranga. Uma obra que buscou alimentar o nacionalismo, a sensação de autonomia e o orgulho patriótico no brasileiro. Mas a tela, estampada em livros escolares, destoa violentamente da realidade.
Dom Pedro, na verdade, não estava montado em um belo cavalo de guerra, mas em um burro, voltando da cidade de Santos, debilitado por vômitos e diarreia. Desde o início de setembro recebia sucessivas cartas vindas do Rio de Janeiro — as correspondências de José Bonifácio e de Dona Leopoldina, que já em 2 e 6 de setembro o pressionavam a romper com a Coroa. A cada nova carta, crescia a cobrança por uma decisão rápida. O mal-estar físico e as mensagens que continuavam a chegar pressionaram o príncipe e o levaram à famosa proclamação.
Mas e o povo? E os negros?
O Brasil escravocrata pressionava o príncipe porque havia interesses concretos em afastar o controle de Lisboa. De fato, as elites temiam perder privilégios; além disso, queriam liberdade para negociar diretamente com outras nações e, por fim, desejavam evitar que Portugal tentasse recolonizar o território. Assim, Dom Pedro sucumbiu às pressões políticas e econômicas; contudo, isso não significou nenhuma transformação social real para a maioria da população. A escravidão continuou firme, a pobreza seguiu esmagadora e a exclusão manteve-se como marca profunda da sociedade.
A população escravizada ou mesmo os libertos permaneceram sem chance de ascender socialmente. As estruturas de poder foram preservadas — apenas os donos do poder mudaram de endereço. O “Brasil independente” nasceu livre apenas para os brancos proprietários.
1822 – Independência do Brasil
Independência para quem? O grito do Ipiranga não libertou negros, índios e pobres. A escravidão seguiu intacta. O país nasceu livre só para a elite branca.
1830 – Código Criminal do Império
Batuque, capoeira, reuniões de negros: crime.
A cultura africana foi tratada como desordem. O Estado criminalizou a liberdade do corpo e da alma negra.
1837 – Lei que proíbe negros nas escolas
Negros, ainda que libertos, foram proibidos de estudar.
Educação virou privilégio de brancos. Um povo inteiro condenado à ignorância forçada pela lei.
1850 – Lei Eusébio de Queirós
O tráfico negreiro foi proibido, mas os negros no Brasil continuaram cativos. A liberdade não chegou: consolidou-se a escravidão interna.
1850 – Lei de Terras
Negros libertos foram impedidos de comprar terras.
Enquanto isso, o governo financiava imigrantes brancos para ocupar o país.
Aqui começa o projeto eugenista de branqueamento.
1871 – Lei do Ventre Livre
“Liberdade” para os filhos das escravizadas. Mas até os 21 anos ficavam servindo aos senhores.
Uma liberdade que não libertava.
1885 – Lei dos Sexagenários
Negros com mais de 60 anos eram libertados.
Depois de uma vida inteira de exploração, eram jogados na miséria, sem terra, sem trabalho, sem direitos.
1888 – Lei Áurea
Fim legal da escravidão.
Mas não houve reparação, nem terras, nem oportunidades.
Liberdade sem pão, sem teto e sem escola. A exclusão virou herança.
1890 – Código Penal da República
Candomblé, umbanda, capoeira: crime.
A primeira República nasceu perseguindo as religiões e os corpos negros. O racismo virou política de Estado.
1900 em diante – Políticas Imigratórias
O governo subsidiava europeus para ocupar o Brasil.
Negros recém-libertos, jogados na rua.
Enquanto uns recebiam terras e oportunidades, outros herdaram o abandono.
Mas a história não terminou no abandono. A resistência seguiu.
20 de novembro – Dia da Consciência Negra
Instituído pela Lei 12.519/2011, em memória de Zumbi dos Palmares, morto em 1695. Em 2023, finalmente transformado em feriado nacional. Uma data que reafirma a luta e a memória do povo negro, lembrando que sem Zumbi e Palmares não haveria resistência coletiva no Brasil.
15 de novembro – Dia Nacional da Umbanda
Reconhecido em 2012, celebra o nascimento da Umbanda em 1908, no Rio de Janeiro. Uma religião genuinamente brasileira, fruto da união entre heranças africanas, indígenas e cristãs. Por décadas criminalizada, hoje ganha espaço de respeito e valorização cultural.
Quilombo dos Palmares – Serra da Barriga, Alagoas
Entre os séculos XVI e XVII, milhares de homens e mulheres construíram o maior território livre do período colonial. Palmares resistiu por quase 100 anos, com agricultura, organização política, espiritualidade e defesa militar. Hoje, a Serra da Barriga é um Parque Memorial e patrimônio histórico, lembrando ao Brasil que a verdadeira liberdade sempre foi sonhada e praticada pelo povo negro.
21 de março – Dia Internacional contra a Discriminação Racial
Data criada em memória do Massacre de Sharpeville (África do Sul, 1960), adotada pela ONU. No Brasil, reforça a luta contra o racismo estrutural que ainda persiste e se desdobra em violência policial, exclusão social e desigualdade de oportunidades.
13 de maio – Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo
Ressignificação do dia da Lei Áurea. Não se celebra a “liberdade oficial”, mas se denuncia o racismo que continuou vivo após a abolição sem reparação. Uma data de reflexão crítica e de mobilização política.
25 de julho – Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra
Instituído pela Lei 12.987/2014, celebra Tereza de Benguela, líder quilombola do século XVIII, símbolo de resistência e de poder feminino negro. Lembra também a luta das mulheres negras latino-americanas e caribenhas.
O Brasil independente nunca foi para todos. Mas o Brasil que resiste, o Brasil que luta e o Brasil que celebra suas raízes negras é, este sim, o país que queremos construir. Cada conquista é fruto de suor, dor e coragem. E se hoje temos dias de memória, datas de celebração e territórios preservados, é porque nunca deixamos de lutar.
Que essa coluna ecoe como lembrete: a luta não terminou. E não devemos nunca parar de lutar.

Graduado em História, com especialização em Ensino de História das Artes e das Religiões, e em Logística, com MBA em Gestão da Produção. Amante das artes e da percussão, é escritor de contos, músicas, poesias, cordéis e esquetes teatrais. Já atuou como ator em peças de teatro, unindo paixão pela cultura e expressão artística.