terça-feira, setembro 16

Bolsonaro e o retrato da ignorância brasileira

Bolsonaro é reflexo de processos psíquicos inconscientes que validam preconceitos e tornam o ódio parte da identidade de seus apoiadores.

Bolsonaro e o retrato da ignorância brasileira sob a lente da psicanálise. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom

O fenômeno Bolsonaro não pode ser entendido apenas no campo político. Ele simboliza a legitimação de preconceitos e intolerâncias que sempre estiveram presentes na sociedade brasileira. O discurso agressivo contra mulheres, negros, indígenas e LGBTQIA+ não afasta seus apoiadores — pelo contrário, reforça a adesão de um eleitorado que busca, acima de tudo, alguém que valide seus ressentimentos.

Ao contrário do que seus seguidores proclamam, Bolsonaro não é mito. Ele representa o reflexo de uma parcela do Brasil que rejeita o conhecimento, teme a diversidade e encontra na violência uma forma de identidade.

A identificação com o líder segundo Freud

Na obra “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), Sigmund Freud explica que o líder se torna objeto de identificação narcísica. O eleitor projeta nele aquilo que gostaria de ser ou aquilo que inconscientemente já é. Assim, as falas violentas e preconceituosas de Bolsonaro funcionam como autorização para liberar pulsões reprimidas.

Essa relação não é racional, mas afetiva e inconsciente. A base bolsonarista encontra no líder um espelho para seus desejos ocultos, transformando a barbárie em bandeira política.

Projeção e ódio às minorias

Outro conceito central da psicanálise é a projeção. Para Freud, trata-se de um mecanismo pelo qual o sujeito expulsa conteúdos internos indesejados, atribuindo-os ao “outro”.

No caso do bolsonarismo, medos e inseguranças individuais são deslocados para grupos minoritários. O ódio ao outro é, na verdade, uma tentativa de negar a própria fragilidade. Dessa forma, atacar mulheres, negros ou LGBTQIA+ passa a ser, inconscientemente, uma forma de defesa psíquica.

O gozo da violência em Lacan

Jacques Lacan ajuda a compreender outra dimensão do fenômeno: o gozo (jouissance). O prazer inconsciente que emerge da violência simbólica, do deboche e da transgressão da norma civilizatória.

O eleitor de Bolsonaro encontra satisfação em rir da dor alheia, em desafiar a ciência e em negar direitos. Esse gozo não é racional, mas está ligado ao que Freud chamou de pulsão de morte — a tendência inconsciente ao caos, à destruição e ao retrocesso.

O bolsonarismo como sintoma social

Bolsonaro encarna a figura do “pai da horda primitiva” (Freud): concentra poder e, ao mesmo tempo, libera a violência de seus seguidores. Esse vínculo inconsciente explica por que a argumentação racional, baseada em dados e ciência, não convence os bolsonaristas.

O bolsonarismo, portanto, deve ser entendido como um sintoma social: a materialização da ignorância coletiva, sustentada por processos inconscientes de identificação, projeção e gozo.

O desafio de superar a ignorância

O verdadeiro desafio que se impõe ao Brasil não é apenas político ou eleitoral. Derrotar Bolsonaro nas urnas representa um passo importante, mas insuficiente diante da complexidade do fenômeno. O bolsonarismo é, antes de tudo, um laço psíquico, um modo de pertencimento que articula ressentimento, preconceito e desejo inconsciente de destruição. Romper esse vínculo exige um trabalho de longo prazo, que ultrapassa a lógica da disputa partidária.

A psicanálise nos mostra que o inconsciente coletivo se organiza por meio de identificações, projeções e fantasias compartilhadas. No caso brasileiro, o bolsonarismo funcionou como uma gramática afetiva, capaz de reunir indivíduos em torno de um discurso de ódio que mascara frustrações sociais e pessoais. Assim, superar a ignorância não se limita a oferecer dados ou argumentos, mas a propor novos símbolos e novas narrativas que mobilizem outras formas de desejo.

Educação crítica e emancipadora

A escola, nesse contexto, deve ser espaço não apenas de transmissão de conteúdos, mas de formação da consciência crítica. Como apontava Paulo Freire, é preciso ensinar a ler o mundo, não apenas a decodificar palavras. Uma educação que incentive o pensamento autônomo é o primeiro passo para enfraquecer a dependência emocional e intelectual de líderes autoritários.

Fortalecimento da democracia

Freud já alertava que a civilização se sustenta em renúncias necessárias, que limitam o gozo individual em nome da vida coletiva. O desafio brasileiro é reforçar as instituições democráticas como mediadoras desse pacto, mostrando que liberdade não pode ser confundida com licença para destruir o outro. O fortalecimento da democracia passa, portanto, por combater a desinformação, proteger a liberdade de imprensa e garantir participação cidadã.

Espaços de escuta e diálogo

O ódio prospera quando não há possibilidade de escuta. Lacan nos lembra que o sujeito só se constitui na relação com o Outro. Assim, criar espaços de diálogo onde diferentes vozes possam ser ouvidas é fundamental para desmontar a lógica binária do “nós contra eles”. Trata-se de reintroduzir a alteridade como valor e restaurar a confiança na linguagem como mediadora dos conflitos.

Novas formas de identificação

Um dos pontos mais delicados é oferecer alternativas simbólicas à identificação com o líder autoritário. Enquanto Bolsonaro encarna o “pai da horda primitiva” — aquele que concentra poder e autoriza a violência —, a sociedade precisa construir outras referências capazes de mobilizar o desejo. Isso significa valorizar narrativas que celebrem a diversidade, a solidariedade e a criatividade, deslocando o eixo da identificação do ódio para a vida coletiva.

Superar a ignorância, portanto, não é apenas uma questão de combater fake news ou punir discursos de ódio. É um trabalho cultural, político e psíquico que envolve educação, democracia, escuta e criação de novos símbolos sociais. Caso contrário, mesmo sem Bolsonaro, o bolsonarismo permanecerá como sintoma latente, pronto para ressurgir sob outras formas.

O desafio é civilizatório: transformar a ignorância, hoje erigida como identidade coletiva, em consciência crítica capaz de sustentar um Brasil verdadeiramente democrático e plural.


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